Obtuso infalível, os teus olhos inflexíveis desmanchando-se
no espaço
A tinta dos teus olhos, minhas lágrimas de esquecimento,
dissolvendo no
Mundo todas as possibilidades do que fomos. O que fomos além
de pontos e borrões? O que somos além de memórias apagadas, vestígios de nada de
um tempo incerto escrito em páginas de iletradas e egoístas solidões? Os traços
dos dissolvimentos, o teu rosto e tudo em torno de ti, a paisagem que morava em
nós, os teus filhos e a tua vaidade de exibi-los como marionetes de mudos troféus, os
teus carros, as tuas casas, os teus pequenos mundos de solidões tocantes e ilusórias,
preenchíveis pelos seres opacos e invisíveis, a codea de pão em cima da mesa, o
gosto de manteiga dissolvendo-se na boca, a gelatina dos teus olhos, a flacidez
da sobremesa em tua boca pálida de incertezas, o vinho acetificado por não ter sido
bebido nos dias felizes, tudo isso e um pouco mais, os teus barcos flutuantes afundando no oceano do passado, os teus incertos
contortos e a chama que nos chama para apagar a vela, tudo isso e além, um pouco mais além, os
móveis imóveis de um silencioso rococó, as bailarinas de Degas, os Matisses e os Picassos, os leões de pedra presos na coleira, os cavalinhos vermelhos, as estrelas decadentes nas garagens gotejantes, e o castrado pneumático jaguar, tudo isso espalhado
feito grama na boca de uma pincelada só, tudo isso feito tinta feito sonho
feito pó, o pedaço de humanidade que sobrou para me tocar, a insensibilidade solúvel
que sobrou solvível no meu olhar de ser vendável e volátil, como etiquetas no
armário de ébano negro, de tintas efervescentes, tudo isso dissolvendo-se no
mundo irreal da irrealidade aparente, o mundo do ser ausente, do inexistente, o
mundo dissolvente, de faustosa indecência, tudo isso e ainda mais, o que guardas só pra ti, os teus
sombrios pensamentos, também isso na tinta escorregas, as manchas negras e os
borrões, o desaparecimento, de toda ilusão, as fontes mortas do jardim secreto,
o discreto mas revelado dentro de ti, de nós, de mim, de vós, a morte de quase
nada, finita a equação do habitável perene sofrimento, captado por uma única
nota, um único pincel, uma cauda solitária, uma oitava só, um grama, um cordel,
o prenúncio de uma tempestade, o invisual vivível no pedaço escuro do negro fúlgido coruscante
céu, protetores do teu mortificante e sagrado bordel, os seguranças das inseguranças, medos do inevitável, o
jardim artificial e as poltronas de veludo, tudo isso e ainda mais, além da
obscuridade da morbidez de teus pensamentos obtusos, a invisibilidade de teu
ser, lógica do inquestionável, razão suprema da existência de uma só razão no mundo, uma tela e nada mais, teu neoclássico olhar de torpe apodrecimento, tudo isso em vasto e feroz violento dissolvimento, total e completo, absoluto e inevitável, o teu irreversível extermínio, humano dissolvimento, na tinta imortal, os teus passos de extinção, a tela imortal, o artista imortal, enquanto tu, ser humano bestial dos contos
de fadas, a um passo da aniquilação, não consegues ver, o aprendiz do olhar, cegos amantes que sem amam sem nunca se enxergar,
a música na tela, o quadro perfeito, uma autêntica nona sinfonia, composta para
um mundo de surdos, os cegos dirigíveis, seres expressos do perecimento...
Rasgo minha carne, e na mortalidade da parede da minha sala
de jantar, com toda humildade pertencente a um ser que reconhecer um igual, respingo
sobre a sempre inacabada perfeição, as gotas do meu sangue, e escuto os teus
pedaços diluídos nos confins ilimitáveis da tela, gritarem, chorarem,
implorarem o meu perdão, sobre o céu trovejante, o quadro mais infinito de todo
o mundo, aquele que não cabe dentro de nós, por simplesmente ser tudo aquilo
que existe e nunca conseguimos ver.
FC
LUCIFER
Jackson Pollock
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